As cheias da Povoação (S. Miguel, Açores) de 2 de Novembro de 1896

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Cirrus
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Tal como já foi discutido neste site a 31 de Outubro de 1997 um episódio de precipitação muito intensa (220mm/24h) desencadeou centenas de movimentos de vertente, tendo perecido 29 pessoas na freguesia da Ribeira Quente (Concelho da Povoação). No entanto a "pequena história" deste concelho, que começou a ser povoado em 1444, está repleta de catástrofes de igual dimensão e algumas até bem maiores.

Neste post proponho-vos a leitura de algumas passagens referentes ao episódio de precipitação intensa de 2 de Novembro de 1896, o qual desencadeou uma cheia rápida na bacia hidrográfica da Povoação e numerosos movimentos de vertente, tendo provocado a morte de 18 pessoas (13 na Povoação e 5 na Rib. Quente).

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O filho de Deus
Catastrophe

“Pelos telegramas recebidos da ilha de São Miguel sabe-se que uma horrível inundação causou enormes prejuizos em uma parte importante d’aquella ilha, a Villa da Povoação, havendo sobretudo 13 vitimas a lamentar.
Foram destruídas completamente 44 casas e inutilisadas um terço das restantes.
“Ficaram destruídas a recebedoria da comarca, os cartorios e a botica.
Os estabelecimentos commerciaes estão atulhados, assim como as casas, até á ultura d’um primeiro andar.
Os moinhos foram levados pela inundação.
Terrenos de cultura, quintaes e estradas completamente arrazadas.
N’alguns pontos os sulcos attingem á profundidade de 10 metros.
No centro da villa formou-se um enorme pantano. As communicações tornam-se quasi impossiveis.
E’ absoluta a falta de mantimentos e roupas.
No cemiterio os cadaveres ficaram inteiramente a descoberto.
Na Ribeira Quente os estragos não foram menores.
O mar vae arrojando á costa muitos cadaveres e destroços.

Referência: O Telegrafo,
5 de Novembro de 1896

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“ O enorme cataclismo surpreendeu a Vila da Povoação e o lugar da Ribeira Quente no dia 2 do corrente mês. É o segundo que aquela vila sofre. O de agora foi resultante de uma bomba de água que rebentou sobre a falda do sul das montanhas circunjacentes às duas povoações e das continuadas chuvas torrenciais que caíram desde as 10 horas da manhã até às 3 da madrugada.
As ribeiras extraordinariamente entumecidas, transbordaram, formaram medonhas cachoeiras e precipitaram-se das alturas sobre o povoado, lambendo os terrenos como línguas vorazes levando ante si árvores, gado, as pessoas, as que não puderam fugir a tempo, derrubando pelos alicerces pequenas casas, edifícios grandes e as próprias pontes de pedra, sólidas obras de arte.
É terrível a catástrofe que sepultou no luto, na miséria e na dor uma das nossas mais belas regiões. (…) As vitimas são treze na Povoação e cinco na Ribeira Quente.
Para ver a intensidade das chuvas basta dizer que uma mata de 12 alqueires ficou sem uma única árvore. Para se calcular do imenso destroço, basta dizer que até à praia do languim, a 30 milhas o mar arrojou animais mortos, pinheiros com raízes, abóboras, inhames, etc.. Ao porto da Calheta veio dar uma criança. Na Povoação o povo refugiou-se na igreja onde passou duas noites. Da torre viam no cimo das casas almas aflitas a pedir misericórdia e sem puderem receber auxilio lá eram levadas pelas enxurradas.”

Referência: Açoriano Oriental,
2de Novembro de 1896

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2 de Novembro de 1896
A “cheia” da Povoação

(…)
“… Já 25 annos se sumiram na voragem do tempo, depois que esta Vila foi assaltada e quasi inteiramente arrasada por um cataclysmo, a que o povo, na sua linguagem sugestiva, ficou chamando – a cheia!
Rememorando aquela medonha e pavorosa catastrofe, os meus olhos como que vêem, ainda espavoridos pelo horror da visão, a torrente impetuosa, levando para o mar tudo o que a força bruta das aguas indomaveis arrastava n’uma amálgama terrifica: arvores enormes, terra, penedos formidáveis, animaes, destroços de quarenta e duas casas, e homens e mulheres que passavam, levados por uma morte horrivel, ante os olhos pávidos de quantos, n’uma absoluta e torturante impossibilidade de socorro; tiveram a desventura de presenciar um tal espectaculo! Horribile viseu!
Recordo com lancinante dor, essa cheia, cujo fragor ainda oiço, e cujo ímpeto em poucos minutos transformou em fragas sítios lindos (…).

Referência: Correio dos Açores,
1 de Novembro de 1921

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Vince

Furacão
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Bem vindo ao fórum, e obrigado pelo material que tens colocado. Sem dúvida que são relatos muito interessantes.
 

fablept

Nimbostratus
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Fica aqui um relato do pai de um emigrante enviado ao New York Times, o artigo foi publicado a 31 de Dezembro de 1896

http://query.nytimes.com/mem/archive-free/pdf?res=F50C10FC385515738DDDA80B94DA415B8685F0D3
The St. Michaels Waterspout

Letters say many lives were lost in the Town of Povoacao.

(...)

ARRIFFESS, St. Michael, Nov 15 - Since i last wrote you our island has been visited by a terrible disaster, coming from both the clouds and from the sea, in the shape of a waterspout, a sort of a water cyclone. St Michael is today a land of mourning and desolution.

Povoacao, the centre of the disaster, is almost desolate. Every house in the path of the water cyclones were wiped out of existence.
Cattle and farming products were swept away, and an orange grove of fifteen acres was left destitute of everything. Gaps were formed in the ground to the depth of fifteen feet, making the highways impassable. In some instance some of the gaps were refilled by the debris and piled up to a height even with the lower stories of the buildings that remained standing.
Some of the villages and suburbs of Povoacao are more or less affected by the deluge, and communication is impossible, owing to the telegraph wires being down and the roads impassable. This makes it very difficult to get at proper details of this worst catastrophe that has ever visited the island.

The waterspout, as observed by some people, seemed to form high up in the clouds, and, gradually descending, met another which was forming in the sea, causing a gret commotion in the waters. The upper spout actually raised the lower one, forming a sort of column, which driffted apparently toward the land, and, finally descending, burst over the land, permitting great volumes of water to fall, destroying and flooding everything in its path.
By the next mail i shall probably be able to give you further and more accurate details."