Observar os astros com binóculos, parte I

adiabático

Cumulus
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Estou a pensar em adquirir uns binóculos para observação dos astros e tive uma oportunidade de experimentar esta actividade na passada noite de Domingo para Segunda-Feira (uma oportunidade ganha pelo facto de o feriado de 1 de Maio, em Moçambique, ter sido movido para 2ª por calhar num Domingo).

Próximo de Caia, mais ou menos a meio-caminho entre a Beira e Quelimane, num lugar chamado Catapu, há um "lodge" no meio da floresta gerido pela família do Sr. James White. Temos parado lá frequentemente, quase todos os fins-de-semana. O James é um anfitrião extremoso; apesar de também gerir a serração, as colmeias e o fabrico de peças de artesanato, vem todas as refeições ao restaurante e faz questão de conversar com cada cliente. Assim "como quem não quer a coisa", um dia puxei o assunto da observação de astros e perguntei-lhe se tinha uns binóculos. Pois, tinha e emprestou-mos com um fleumático "with absolute pleasure" :).

Os binóculos são Zeiss, 12x45, pareceram-me muito bons.

Nessa primeira tentativa era lua-cheia e fiquei abismado com o detalhe com que conseguia ver as crateras. Outros astros já não se viam tão bem, por causa do brilho da Lua. Foi um desafio conseguir estabilizar os binóculos, 12x já é uma ampliação grande. Acabei com uma grande dor de costas mas com entusiasmo para repetir a dose noutra oportunidade.

No fim-de-semana seguinte o Sr. James não estava, por isso, nada de binóculos, mas entretive-me a tentar reconhecer algumas constelações, com ajuda de uma aplicação muito simples que tinha no iPod (Stars). Imediatamente reconheci o Cruzeiro-do-Sul (as quatro estelas são todas muito brilhantes), perto do qual um estava um par de estrelas que já faz parte do Centauro (e uma delas era a sua estrela alfa (mais brilhante), que é a estrela mais próxima do Sol). Um pouco mais para Este o Escorpião com as três estelas da "cabeça" e o "corpo" torcido onde se vê Antares (alfa do Escorpião, uma gigante vermelha). Fiquei fascinado com a facilidade com que se conseguia distinguir a tonalidade desta estrela. A alfa do Centauro parece brilhar com todas as cores em sucessão rápida, um brilho que não tenho a certeza de não se tratar de uma aberração óptica provocada pelas lentes dos binóculos. Também brilhava assim outra estrela muito brilhante, Sírio (alfa do Cão e a estrela mais brilhante do nosso firmamento, bem visível mais para Oeste).

Voltei ao Escorpião, que estava a levantar-se, ainda próximo do horizonte e tentei seguir a eclíptica: Balança, Virgem. Aproveitei o rumo das duas "estrelas" mais brilhantes da Virgem, que pareciam coincidir com a direcção da eclíptica, para encontrar o Leão. Uma das duas "estrelas" era a Spica (alfa da Virgem), mas a outra "estrela" (só o descobri mais tarde) era o planeta Saturno :). Perto da Virgem, um trapézio muito fácil de identificar como a constelação do Corvo; para lá desta, a Hidra. O Leão era outra constelação "contorcida" cujas estrelas, todas relativamente brilhantes, tornavam fácil de reconhecer (nomeadamente Régulo, a alfa do Leão). O Caranguejo já não era tão fácil, pois todas as suas estrelas são relativamente pouco brilhantes; mais fácil era Gémeos com as duas estrelas brilhantes Castor e Pólux, já a caír para o horizonte, a Oeste. Touro já não se via.

Outras constelações fáceis de identificar, neste hemisfério Sul, eram o Triângulo austral e a Vela. A Via Láctea, espectacular neste hemisfério, tinha a zona mais densa de estrelas entre o Cruzeiro do Sul e Vela; seguindo a Via Láctea para Oeste, atingia-se Orion já a descer sobre o horizonte; de caminho passa-se perto da tal estrela Sírio do Cão.

Assim que me apanhei de volta a Quelimane e com acesso à net, descarreguei todas as aplicações de astonomia para o iPod (as gratuitas, claro ;) - Stellarium, Distant Suns, Sky3D e outras.

Como este post vai longo, continuo depois (parte II)...
 


adiabático

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Observar os astros com binóculos, parte II

(continuação)

No tal fim-de-semana do 1º de Maio era lua-nova, o James estava em Catapu e emprestou-me novamente os binóculos (with absolute pleasure). Eu estava artilhado com aquelas aplicações do iPod com mapas do céu, nomes de estrelas e constelações, localização de objectos do céu profundo, artefactos espaciais, etc.....

Assim que escureceu, puz-me a observar. Comecei, claro, pelo Cruzeiro do Sul e Via Láctea - espectacular! Enxames de estrelas "aos molhos" :) Tentei ser um pouco sistemático e voltei à estratégia de seguir a eclíptica. No Escorpião descobri uma nebulosa que o software me dizia ser M4, aglomerado globular, perto da estrela Antares. Seguindo o "corpo" do escorpião até à sua "cauda enrolada", os aglomerados de estrelas M6 ("butterfly cluster") e M7 ("Ptolemy's cluster") formam uma espécie de triângulo equilátero com a estrela Shaula do escorpião.

Apercebi-me de que, com um campo de visão limitado pela ampliação dos binóculos, a cor das gigantes vermelhas ajuda imenso para nos localizarmos ao "varrer" o céu :) tal era o caso da Antares.

Lembrei-me de que a constelação do Orion desapareceria em breve sob o horizonte e procurei um sítio de onde a pudesse observar - estava numa boa clareira mas, com árvores a toda a volta e algumas no meio, não podia ficar sempre no mesmo sítio. As famosas nebulosas do Orion são visíveis a olho nú como uma mancha difusa no lugar da "estrela central" das três que formam a espada de Orion. Com os binóculos conseguem distinguir-se duas manchas, mas sem tripé ou qualquer forma prática de estabilizar os binóculos, é tudo... Voltei à eclíptica mas comecei pela constelação Gémeos, que também descia para o horizonte, e parei no Caranguejo.

Na semana passada mal tinha conseguido reconhecer esta constelação a olho nú, mas desta vez, com os binóculos, pude observar um espectacular aglomerado, a Colmeia (M44). Tinha em mente a "crab nebula" (M1) mas não sabia, na altura, que não ficava na constelação do Caranguejo... Naturalmente, não encontrei! :) Fica no Touro e não é visível nesta altura do ano (estamos precisamente no signo de Touro e o Sol anda agora por essas bandas).

Vi pelo software que havia uns objectos de céu profundo perto da Ursa Maior e fui tentar encontrar. A "big dipper" não estava totalmente visível, fosse pela latitude, pela hora, pela altura do ano ou combinação das três (versejava o Camões "Vimos as Ursas, a pesar de Junho/Banharem-se nas águas de Neptuno" - algo que nunca acontece no hemisfério Norte). Até me surpreendeu que fosse possível ver alguma parte da Ursa Maior mas sim, não estou tão longe do equador, a 12º Sul. Portanto, não se podia identificar a Ursa facilmente pelo desenho formado pelas sete estrelas mais brilhantes ("big dipper") porque algumas não estavam visívels, mas consegui encotnrar a estrela Alcaid pela posição relativa à constelação do Leão. Os tais objectos que procurava é que, infelizmente, estavam demasiado baixo, ocultos pelas árvores.

Foi então que reparei, graças ao software, que o planeta Saturno se apresentava na constelação da Virgem e que era, de facto, uma das "duas estrelas brilhantes" que na semana anterior me tinham guiado até ao Leão. Estava quase no zénite, o que era uma maçada porque não conseguia "fabricar" nenhum apoio estável que me permitisse ter os binóculos numa posição confortável para observar. O mais estável que consegui foi deitado de costas, sustendo a respiração, com os binóculos apoiados directamente sobre a cara, a "pisar-me" os olhos ;) doloroso e nada confortável! O planeta parecia dançar furiosamente, apesar de tudo, e fugia sempre que eu pensava ter conseguido estabilizar os binóculos. Não sei se a imaginação me atraiçoava, mas penso que consegui perceber o disco do planeta, que estava em quarto (se crescente ou minguante, não sei) e penso mesmo que dava para ver os anéis, ou quase metade deles, parcialmente obscurecidos pela sombra do planeta. Digam-me os experimentados se é possível ver isto com 12x...

Saí novamente da eclíptica para visitar o Corvo. No centro de um triângulo formado por estrelas do Corvo, da Hidra e do Centauro (desculpem, não anotei quais) ficava a "pinwheel galaxy" (M101), uma galáxia em espiral, visível como uma mancha com estes binóculos.

Apareceram nuvens e o céu foi ficando encoberto. Fui dormir com o despertador programado para as 4:30 com esperança de conseguir ver os outros planetas, todos muito mais próximo do Sol e que só seriam visíveis de madrugada. Acordei e levantei-me a essa hora mas, para minha desilusão, ainda havia muitas nuvens a Este e a região onde seria possível ver esses planetas estava encoberta.

Assim, enquanto o dia nascia, ainda tive tempo de voltar ao Triângulo Austral onde uma estrela, Atria, brilhava agora com uma tonalidade mais reconhecivelmente avermelhada (é, de facto, uma G.V.). Voltei ao Escorpião, abaixo do qual já se via o Sagitário. A linha formada pelas estrelas Shaula do Escorpião e Kaus Australis do Sagitário (a estrela mais brilhante desta constelação, apeasar de ser designada pela letra epsilon) apontava para duas gigantes vermelhas menos brilhantes que o software me disse serem a estrela SAO209318 (obscura designação de uma das estrelas menos brilhantes das principais que formam o Escorpião) e a estrela eta do Sagitário.

Passando decididamente para o Sagitário, consegui ver, perto da estrela Kaus Borealis (lambda do Sagitário) a M22 ("nuvem do Sagitário", um grande aglomerado globular). O Sagitário também apanha a Via Láctea e é uma fartura de objectos. Próximas uma da outra, mais duas nebulosas, M8 ("lagoon nebula") e M22 ("trifid nebula")... apenas duas manchas com estes binóculos, sem tripé, mas fiquei entusiasmado por lhes conhecer as espectaculares imagens obtidas com os grandes telescópios e com o Hubble...

A pensar noutras aventuras para o futuro!

Escrevi este relato para partilhar o meu entusiasmo e encorajar quem ainda não experimentou, pois é incrível o que se consegue ver com um bom par de binóculos! Ter um guia ou um programinha para ajudar a identificar, é uma boa ajuda! A verdade é que o céu não é mais nem menos bonito por se imaginar as figuras míticas desenhadas pelas estrelas, mas conhecer as constelações e as estrelas pelo nome vai ajudando a encontrar de novo o caminho pelo "oceano cósmico".

Abraços!