A situação meteorológica do final da semana tem dado bastante que falar, e de facto merece uma análise bem cuidada dado o carácter excepcional e a complexidade que apresenta.
Uma depressão em altitude vai-se isolar da circulação zonal gerada pelo complexo sistema depressionário que tem afectado os Açores e trazido algumas frentes em dissipação com precipitação geralmente fraca no continente (litoral norte e centro) entre 5a e 6a feira, posicionando-se na região da Madeira, deslocando-se lentamente em direcção ao continente. Essa cut-off forçará um fluxo em altitude de SE, transportando uma massa de ar muito quente do Norte de África, que deverá provocar uma subida significativa das temperaturas na 6a e no Sábado. Se será para bater records, ainda será um pouco arriscado dizer, uma vez que o deslocamento da cut-off ainda poderá sofrer ligeiras alterações mas que são importantes e podem impactar as previsões.
Portanto, na 6a feira temos uma crista anticiclónica em altitude, com a aproximação de uma cut-off vinda de W/SW a forçar circulação de S/SE, e uma depressão (vale invertido desde o Norte de África) à superfície.
Além das altas temperaturas, os elevadíssimos valores de CAPE previstos têm chamado a atenção, surgindo a velha questão se vai despoletar convecção, e consequentes trovoadas.
Para responder a essa questão, é preciso analisar os perfis verticais mais em pormenor. Ora, vejamos um tefigrama para o Porto:
É possível verificar que o CAPE surge apenas acima dos 700 hPa, sendo a atmosfera bastante seca abaixo desse nível, com excepção da superfície. E aí está o detalhe que justifica estes CAPE's enormes, é o facto de à superfície, e só mesmo junto à superfície, haver humidade. Há uma inversão nos níveis baixos, que não permite qualquer movimento vertical ascendente, fruto de uma camada que não está bem "misturada". Se começarmos uma ascensão de uma partícula acima dessa camada superficial húmida, o CAPE desceria imenso. É um exemplo de um perfil que seria muito mais realista usar um
Mixed layer CAPE, em vez de um most unstable, ou suface based CAPE.
Veremos o perfil em Braga:
É um perfil que não apresenta uma inversão nos níveis baixos tão marcada quanto no Porto. Mesmo assim tem uma camada estável que deverá ser suficiente para inviabilizar a convecção. Mais uma vez, um ML CAPE seria mais apropriado, e o valores de CAPE seriam novamente reduzidos.
Agora, Santa Comba Dão:
Aqui, com cuidado se verifica novamente uma pequeníssima inversão à superfície, mas rapidamente ultrapassada, com a temperatura logo nos níveis acima a cair quase à taxa da adiabática seca, e portanto "condicionalmente instável". É um perfil com um aspecto mais próximo de um "V invertido", em que temos uma camada quente e seca e mais bem misturada. Neste caso, o ML CAPE não apresentaria uma redução tão drástica do CAPE. Apesar de valores mais modestos de CAPE, este é um perfil que eu teria mais atenção. Se houver forçamento suficiente, é um dos casos que pode gerar convecção em altitude, cuja precipitação poderia evaporar na camada seca, não chegando à superfície. Essa evaporação poderia provocar arrefecimento por absorção de calor latente, e originar rajadas convectivas, e trovoadas secas. Aqui, como exemplo, e para comparação, vemos um perfil de V invertido perfeito:
E agora, chegamos a algo que poderá ser a parte mais crítica deste evento: os incêndios.
Os perfis atmosféricos de "V invertido" são o pesadelo de qualquer bombeiro. Devido à possibilidade de trovoadas secas, rajadas convectivas, toda esta instabilidade em altitude que pode provocar não só ignições, mas dificultar imenso o combate.
Particularmente, caso haja ignição, à superfície a temperatura pode-se elevar de tal maneira que pode destruir por completo a camada estável à superfície, e assim que entrar na camada instável, prime-se o "gatilho", e qualquer partícula tem caminho livre para ascender a grande velocidade, gerando um pirocúmulo, com risco de trovoadas, rajadas... que podem provocar mais ignições nas redondezas... um caos. Repito, CASO haja ignição, esse é o "trigger" necessário à convecção nesta situação que acabei de descrever.
Resumindo... situação muito complexa a alguma distância temporal, o que gera ainda alguma incerteza, mas que exige muito, muito cuidado, no que a incêndios diz respeito, especialmente pela instabilidade presente na atmosfera nos níveis altos. É importante haver responsabilidade da população para evitar comportamentos de risco. O histórico em situações com muito calor, instabilidade e depressões a W/SW diz tudo...