O tornado nunca partirá para sempre
Um mês após a tempestade em Tomar, Ferreira do Zêzere e Sertã, o peito de cada um ainda se aperta ao mínimo sopro do vento
Há um vento que arrepia, que atravessa num calafrio todo o corpo, quando as nuvens negras fazem adivinhar o mau tempo. Há um mês que ninguém tem descanso no estaleiro em que o tornado transformou meia centena de aldeias dos concelhos de Tomar, Ferreira do Zêzere e Sertã.
"Quantos mais dias passam, mais me lembro. Qualquer coisita de vento a mais e fico em pânico", diz João Marques, num cenário ainda devastado, em Carrascal, na terra dos Templários. Há um sentimento de revolta de alvo indefinido e de impotência quando o medo recorda que "o malandro" pode voltar, a qualquer momento, enquanto a chuva teima em cair, dificultando ainda mais a recuperação de centenas de casas.
PANDEMÓNIO
João Marques tem cem mil euros de prejuízo. Uma parte coberta pelo seguro. As obras na casa onde vive com a mulher, o filho, a nora e os três netos, um destes com apenas 15 meses, começaram esta semana. "Aquilo foi um pandemónio. Vi-o vir direito a mim e nunca pensei ver na vida uma coisa assim. Parecia um forcado à espera de um touro", tenta descrever o comerciante, reformado, de 63 anos. Há oito dias, o mau tempo voltou a atingir a vivenda onde a família se acomoda como pode, até numa tenda montada na garagem.
"Uma pessoa está sempre à espera do pior. Tenho momentos em que isto aqui por dentro fica tudo aos pulos". E é para aliviar essa dor no peito que está sempre à procura de metáforas para explicar o tornado e os 17 milhões de euros em estragos nos três concelhos: "Aquilo parecia um vulcão a lavrar pela terra acima. Aquele diabo trazia tudo pelo ar. Parecia uma esquadra de aviões de guerra, mais de meia dúzia. Uma coisa sem explicação. Só quem viu é que pode sentir". Um bombardeamento que danificou pelo menos 234 carros.
"A gente vê na televisão aquelas coisas nas Américas, no Haiti, e pensa se aquilo será mesmo real. E afinal também aconteceu uma coisa parecida aqui. Uma pessoa até fica pasmada", conta João Marques, que teve de fugir para a cave com o neto mais novo para o salvar. "Juntei-me a uns pilares e meti o menino debaixo de mim até aquilo passar. A minha nora ficou no andar de cima e foi abrigar-se num corredor, junto a uma casa de banho interior. Ela gritava muito, mas de repente calou-se. Sempre pensei que estivesse morta. Mas depois, felizmente, voltou a chorar".
FORAM SEGUNDOS
Em Venda Nova, também no concelho de Tomar, Manuel Soeiro é uma das milhares de pessoas que sofre. "Presenciei tudo e safei-me por pouco, resguardado numa ombreira de uma porta. Aquilo demorou segundos e quando vim à rua só ouvia mulheres a gritar. Primeiro uma toda cortada por uma chapa, depois outra e ainda outra. Estava tudo em pânico". O ex-emigrante, com 11 anos de trabalho na Suíça e em França, como pedreiro, perdeu o investimento de uma vida em três casas, nenhuma delas segurada. O vendaval levou-lhe 160 mil euros em bocados de tijolo, telha, portas, janelas e o que mais estava no seu caminho, e agora os tostões amealhados estão à beira de acabar. Iguais às dele ficaram mais 819 habitações, dezenas de empresas e outras estruturas.
Manuel Soeiro lamenta o pouco apoio que tem recebido. "Não recebi nenhum auxílio. Nem telhas me deram", diz, apontando uma sugestão que advém muito do desespero: "Os desempregados que estão a receber subsídio deviam estar no terreno, sob coordenação dos engenheiros da Câmara, a ajudar na reconstrução. E àqueles que não quisessem era-lhes cortado o subsídio".
Aos 68 anos, o reformado também desespera por palavras para explicar o que aconteceu ao princípio da tarde de 7 de Dezembro e ao seu futuro, pior do que imaginara.
"Aquilo, visto ao fundo, pareciam gaivotas no ar a rodopiar. Quando saí à rua pensei: ‘isto não pode ser’. É uma coisa fora do normal. Nunca julguei que fosse um tornado. Agora estou sob grande pressão. Uma pessoa anda aqui numa pressão doida. Tenho a vida enterrada nas três casas. Já gastei quase tudo e agora? Ainda acabarei no hospital".
O ex-emigrante Manuel Soeiro queixa-se da falta de apoio, da muita conversa dos primeiros dias e do silêncio dos seguintes. E João Marques – o comerciante que viu chegar o tornado com o forcado vê o touro – da prometida ajuda psicológica, ainda hoje precisa, mas que nunca chegou. E queixam-se de muito mais, mas sobretudo da hora e meia de pânico que percorreu 54 quilómetros, numa faixa com centenas de metros de largura, arrastando às vezes até a própria vontade de viver.
ABATE DE ÁRVORES
Quando se entra em Ferreira do Zêzere pelo lado do tornado, junto ao cemitério, impressionam as centenas de árvores que ainda jazem, partidas como palitos e dobradas como vimes. E o impacto ciclópico do vento a mais de 200 km/h já foi suavizado pelo passar do tempo e dos homens empunhando motosserras. Em Lamaceiros, a propriedade de António Martins ficou em estado semelhante.
O antigo comerciante e ex-emigrante na Venezuela, de 76 anos, lamenta sobretudo a perda das árvores. "Caíram aquelas em que tinha mais gosto: um pinheiro e um sobreiro centenários. O pinheiro já existia quando a minha mulher para cá veio com cinco anos, e hoje tem 74".
"Eu não gosto de cortar árvores. Cortei algumas há 20 anos, mas foi por causa de um fogo. Agora foram os choupos, árvores de fruto, pinheiros… Resistiram os eucaliptos", descreve António Martins, enquanto as máquinas serram e retiram a madeira dos terrenos. "O meu maior prejuízo é o desgosto, porque a venda da madeira acaba por pagar os estragos".
Na oficina Auto-Portinha, o mecânico António Portinha, de 54 anos, queixa-se de outros males. As instalações da empresa e a sua casa, em frente ao local de trabalho, não foram poupadas pelo vendaval e os estragos vão custar 11 mil euros. "Eu não estava cá. Vi-o chegar à distância e mal pensei no que podia acontecer. Quando aqui cheguei, estava tudo destruído: telhados, janelas, portas. Isto foi uma catástrofe bera".
O DEMÓNIO
Em Pião, no concelho da Sertã, onde a tempestade começou a perder força até se desfazer, os estragos também são avultados e os sentimentos dos moradores semelhantes. Em 2003 a zona foi devastada por um incêndio. "Primeiro foi o diabrete, agora foi o demónio", conta Nazaré Rosário, de 71 anos. A mulher vive em Sardinheira, mas tem uma pequena casa naquela aldeia.
"Há sete anos o Estado ajudou a pagar, agora não sei como vai ser", diz, apontando que "a casita, com uma loja de animais e um palheiro em cima", lhe faz falta. Mais estragos sofreu a propriedade de Carlos Dinis, um pedreiro, desempregado, de 52 anos. A tempestade arrancou oliveiras, algumas centenárias, telhados, portas e janelas. Um prejuízo de dez mil euros que ambos tentam recompor com a ajuda da Junta de Freguesia, bombeiros, amigos e familiares.
"Ainda andamos a arranjar os barracões e são precisas outras obras. O tornado foi tão forte que até deslocou vigas de cimento da massa onde estavam agarradas", acentua o morador.
SOLIDARIEDADE
Também em Ferreira do Zêzere há uma onda de solidariedade que acompanha o rasto deixado pelo tornado. Empresários de construção civil e de outras áreas, bem como grupos de escuteiros e populares, mobilizaram-se para ajudar a restabelecer a normalidade. Ofereceram 13 mil telhas, materiais de construção diversos e portas.
Em Tomar, a Câmara Municipal celebrou um protocolo com o BES no valor de cem mil euros para apoio às famílias para a recuperação das suas casas. O empréstimo é pago em 12 anos, com zero por cento de spread. Abriu ainda uma conta de solidariedade para recolha de fundos.
INCERTEZA DE VIDA
Na Sertã, a maior preocupação da Câmara são as empresas, sobretudo a Resicorreia (afectada em 95% da sua capacidade de laboração), e o Centro Náutico do Zêzere, seriamente afectado. "Estão em causa postos de trabalho e a criação de riqueza para o concelho", salienta a autarquia. Nos três concelhos, as obras de recuperação do "estado de guerra" em que ficaram – como descreve Américo Pereira, de 54 anos, de Venda Nova – ainda vão demorar meses, apesar dos esforços das autarquias e entidades oficiais e particulares. Ainda há muito entulho para retirar das bermas das estradas, centenas de árvores cuja morte oficial falta decretar, edifícios públicos e privados por recuperar. A normalidade ainda vai demorar.
"Eu tive 20 mil euros de prejuízo na casa e no carro. Mas o pior não é isso. É a chatice, os nervos, o trabalho", diz o antigo segurança, que exerceu na Suíça, onde esteve 22 anos. O pior é o drama dos 43 feridos e 13 desalojados, já regressados às suas casas, onde ainda predominam as lembranças do início da tarde trágica de há um mês. É a incerteza de que tudo pode repetir-se a qualquer instante que dói a milhares de habitantes. Como a incerteza da própria vida. Que aqui nunca mais será como até há um mês.
UM DOS MAIORES DE QUE HÁ REGISTO
Este foi um dos maiores tornados de que há registo em Portugal. As atenções centraram-se em Tomar, onde, nas primeiras horas, a prioridade no socorro foi para o Jardim-escola João de Deus, onde se encontravam 140 crianças. Mais de uma centena de bombeiros e 40 viaturas estiveram no terreno. A tempestade feriu 19 crianças, uma delas em estado grave.
Nos dias seguintes a prioridade foi para a cobertura das habitações, com a colocação de plásticos, para evitar infiltrações, bem como apoiar as pessoas mais carenciadas. Neste momento estão referenciados 125 pedidos de apoio a vítimas.
O tornado mais intenso de que há registo ocorreu em Castelo Branco, a 6 de Novembro de 1954, às 12h45, estimando-se que tenha atingido a intensidade F3. Fez cinco mortos e 220 feridos.
NOTAS
54 QUILÓMETROS
O fenómeno atingiu dez freguesias de três concelhos, tendo percorrido uma extensão de 54 quilómetros.
FERIDOS
Quarenta e três pessoas sofreram ferimentos. A maior parte – 36 – estava no concelho de Tomar.
MILHÕES
Só no concelho de Tomar, o mais afectado pelo fenómeno atmosférico, o valor dos estragos atingiu os 9,5 milhões de euros.
CASAS
Mais de 800 casas dos concelhos de Tomar, Ferreira do Zêzere e Sertã ficaram danificadas após a passagem do tornado.