Arquivo de eventos históricos

Mário Barros

Furacão
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18 Nov 2006
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Maçores (Torre de Moncorvo) / Algueirão (Sintra)
Em Dezembro de 1909 eclodiram violentos temporais em Portugal. A Illustração Portugueza registava, no seu número de 3 de Janeiro de 1910, as primeiras reportagens em vários locais do país, nomeadamente Lisboa, Porto, Sacavém, Alenquer e Vila Nova de Gaia.

"Portugal devastado pelas águas" era o título usado.

Contam que o temporal se iniciou a 22 de Dezembro e terminou a 24 do mesmo: Ficaram conhecidas pelas cheias de 1909, em Portugal. Aconteceu o mesmo fenómeno em Espanha e França.
Entre os fotógrafos que cobriram esta tragédia, destaca-se a qualidade de Joshua Benoliel.

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http://casadotinoni.blogspot.com/2010/02/as-cheias-de-1909.html
 


Mário Barros

Furacão
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Maçores (Torre de Moncorvo) / Algueirão (Sintra)
A cheia do Douro de 1909

O tabuleiro inferior da Ponte Luís I esteve para ser cortado

Não é possível sintetizar, em meia dúzia de linhas, toda a história das grandes cheias que ao longo dos séculos se verificaram no rio Douro e trouxeram a insegurança e o pânico às margens ribeirinhas do Porto e a de Vila Nova de Gaia.

Sabe-se que em 1526 ocorreu uma das maiores cheias que houve na idade média. Depois disso muitas outras vieram. A de Dezembro de 1727 foi a maior do século XVIII. A água subiu a tal ponto que de cima do muro da Ribeira chegava-se com as mãos à água. Foi nesse ano que o Douro galgou a margem esquerda e inundou o mosteiro do Corpus Christi não obstante este ter sido alteado cem anos antes… por causa das cheias. Mas a cheia de maiores proporções, aquela que mais estragos causou e em que as águas atingiram alturas até aí inimagináveis, foi a de 1739. A água atingiu alturas tais que cobriu o cimo do muro da Ribeira e chegou ao até ao altar mor da capela de Nossa Senhora da Piedade, vulgarmente conhecida por Senhora do Ó, que fica no Largo do Terreirinho. As grandes cheias continuaram a acontecer durante todo o século XVIII e XIX. E quando se pensava que, por via da construção das barragens o rio estava, finalmente, controlado eis que de novo o Douro sai do seu leito e ameaça as povoações vizinhas. Aconteceu em 1962 (foto) em que várias embarcações foram arrastadas barra fora. A cheia de 1962, apesar de na Ribeira ter ficado 68 centímetros aquém da de 1909, aproximou-se daquela no numero de perdas de vidas e no volume de estragos que causou.

Foi, exactamente há um século, nos começos do Inverno de 1909, que no rio Douro se verificou uma das maiores cheias de sempre.

Para se avaliar do que foi o volume dos estragos, causados pela a violência da corrente registada no rio, por essa altura, bastará referir que entre vapores de carga, chalupas, iates, patachos, barcos de pesca e de recreio, afundaram-se ou saíram barra fora, desgovernados, por efeitos da enchente, nada mais nada menos do que quarenta embarcações e mais treze rebocadores.

Morreram oito pessoas, entre as quais figuravam três barqueiros e cinco tripulantes, incluindo o capitão, de um navio alemão que se afundou.

Perderam-se também, de forma irremediável, mais setecentas pequenas embarcações entre caíques, barcaças e saveiros.

Estava ancorada no Douro, por essa altura, a corveta portuguesa "Estephânia", que servia de navio-escola da nossa Marinha de Guerra.

A centena e meia de oficiais, marinheiros e alunos que havia a bordo foram obrigados a desembarcar e recolheram-se nas instalações do Regimento de Infantaria 6, então no quartel da Torre da Marca, hoje Rua de D. Manuel II. O navio perdeu-se.

Os prejuízos materiais causados nas duas Ribeiras, a do Porto e a de Gaia, foram enormíssimos.

O primeiro indício de que as águas do Douro estavam a subir de forma ameaçadora foi dado no dia 17 de Dezembro daquele ano.

O Boletim da Associação Comercial do Porto daquele mês chamava a atenção dos seus associados que operavam na zona ribeirinha, e do restante comércio, em geral, para o facto de as águas do Douro estarem a subir gradualmente desde há alguns dias o que fazia prever que se estivesse perante a eventualidade de uma cheia.

Nada que não fosse esperado.

Com efeito, desde os começos de Dezembro que o Porto e toda a região duriense estavam debaixo de um verdadeiro dilúvio, com a chuva a cair incessantemente, empapando de água os campos de cultivo e engrossando o volume das águas dos pequenos rios e ribeiros afluentes do Douro que ao desaguar neste mais contribuíam para o aumento do caudal.

Como a chuva não parasse de cair e o caudal do rio continuasse a aumentar, o Departamento Marítimo do Norte encerrou a barra no dia 20, impedindo a entrada e saída de navios e ordenou que se reforçassem as amarras dos que estavam ancorados junto das duas margens.

No dia 20 aconteceu o que há muito se previa: uma subida brusca das águas.

Em Miragaia, o guarda da Municipal que ali fazia giro contactou os moradores, avisando-os de que deviam tomar precauções porque a cheia vinha a caminho. E o primeiro aviso de que "a coisa" seria a sério veio dos Guindais. Um barco rabelo, carregado de castanhas, que ali ancorara, foi arrancado das amarras pela força das águas e levado rio abaixo, desaparecendo. Um "valboeiro", com cinco mulheres a bordo, ao tentar alcançar a margem oposta, defronte do Areinho, virou-se e só a muito custo se conseguiram salvar as tripulantes.

As crónicas da época não deixam dúvidas quanto ao tempo que se fazia sentir naquele Inverno de 1909. Numa delas fazia-se este trágico relato: "… o vendaval cada vez se torna mais forte; sopra rija ventania de sudoeste que está a provocar grande razia nas árvores da Cordoaria e do Passeio Alegre…"

À medida que a véspera do Natal se aproximava, as condições do tempo agravavam-se e as águas do Douro subiam cada vez mais.

No dia 22 o cais de Monchique já estava completamente alagado.

Mais adiante, no Ouro, o rio subiu de tal maneira que a água invadiu a fábrica do Gás que ali funcionava. Ficava em frente ao cais onde se embarca para a Afurada. Ainda hoje são visíveis os restos do edifício fabril.

A cidade, que ainda era iluminada a gás, apareceu, nessa noite, imersa em trevas.

No dia 23 a chuva parou de cair mas o caudal do rio continuou a aumentar. E subiu tanto que à uma hora da tarde desse dia estava a escassos oitenta centímetros do tabuleiro inferior da Ponte Luís I.

Temeu-se o pior, ou seja, que a subida das águas continuasse e a força da corrente acabasse por derrubar o tabuleiro e com ele (pensava-se) a própria ponte.

Numa tentativa de evitar essa catástrofe chegou a pensar-se em demolir o tabuleiro de baixo por meio de cargas explosivas.

Felizmente essa medida drástica não teve que ser tomada.

Mas o caudal do Douro continuou, nos dias seguintes, a causar algumas apreensões, porque, como escreveu um cronista que foi testemunha de muitos desses acontecimentos, "… o rio barrento, escuro, ruidoso, de aspecto lúgubre, sem aliás deixar de oferecer certa grandiosidade, ia arrastando nas águas revoltas tudo o que encontrava na passagem…"

JN

Um pequeno resumo das cheias de 1909.
 

Mário Barros

Furacão
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Maçores (Torre de Moncorvo) / Algueirão (Sintra)
Um pdf muito interessante, sobre as cheias 3 a 6 de Dezembro 1739 em Portugal.

http://www.ceg.ul.pt/finisterra/numeros/2006-82/82_05.pdf

Resumo – As observações meteorológicas instrumentais, em Portugal, têm início
nos anos 70 do século XVIII. O clima de Portugal anterior àquela década tem vindo
a ser reconstituído exclusivamente com base em fontes documentais descritivas, em
que, de um modo geral, são os extremos climáticos que surgem registados. Dada a subjectividade
que este tipo de informação encerra, a análise crítica do maior número de
fontes possível é um procedimento essencial. Analisa-se aqui o temporal ocorrido em
grande parte do território de Portugal continental, entre 3 e 6 de Dezembro de 1739.
À violência do vento do quadrante Sul, que pelos efeitos relatados poderá ter atingido
velocidades da ordem dos 120km/h, associaram-se chuvas contínuas e intensas, que
originaram cheias nas bacias dos rios Tejo, Mondego e Douro. Os prejuízos foram
muito avultados, havendo referências à perda de vidas humanas e à morte de muitos
animais. Tal como na actualidade, também no passado estes episódios de ventos fortes
e de chuvas intensas ocorreram em situação de fluxo do quadrante Sul.
 

Chingula

Cumulus
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16 Abr 2009
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Lisboa
No ano de 1995:
- Após um ano hidrológico (1994/1995) de seca, em Portugal Continental, o mês de Dezembro foi extremamente chuvoso, tendo de 22 a 31 ocorrido 80 a 90% da precipitação registada em todo o mês.
- Em 9 de Junho, na ilha das Flores (Açores) foram registados 103 mm de precipitação em 6 horas.
- Mês de Outubro, com dias de temperatura elevada para o mês (superior a 30 ºC) na Madeira, em especial dias 18 e 19.
- Dias 1 a 2 de Novembro, o grupo Central dos Açores foi afectado pela tempestade tropical Tanya.
- Dias 7 e 8 de Novembro, a ilha de S. Miguel foi afectada pela tempestade tropical Noel.
 

pmtoliveira

Cirrus
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8 Jan 2009
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Cascais
Também há o caso de Monchique que no dia 26 de Outubro de 1997 durante o dia cairam 274,7mm, tendo a maior parte dessa precipitação ter sido registada em 5 horas. Este fenómeno está bem documentado aqui no fórum.
 

Chingula

Cumulus
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16 Abr 2009
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Lisboa
Também há o caso de Monchique que no dia 26 de Outubro de 1997 durante o dia cairam 274,7mm, tendo a maior parte dessa precipitação ter sido registada em 5 horas. Este fenómeno está bem documentado aqui no fórum.

No relatório de Abril de 1998, do Instituto de Meteorologia, "Os Temporais de Outubro e Novembro de 1997 em Portugal Continental" é também analisado o fenómeno convectivo da madrugada de 26 de Outubro, numa perspectiva meteorológica e, com os registos das quantidades de precipitação da rede da Direcção Regional do Ambiente, faz-se uma análise do campo da precipitação em 24 horas, comprovando que o fenómeno (elevada precipitação) se circunscreveu à Serra de Monchique.
Sendo de realçar que dos 274,7 mm/24 h (em Monchique), foram:
273 mm/7horas, 225 mm/3 horas e 93,4 mm/1 hora.
Na mesma data em 24 horas:
S. Marcos da Serra - 162 mm; Alferce - 129 mm; Marmelete 116,3 mm e das estações meteorológicas do I.M. do Baixo Alentejo e Algarve, apenas Sagres registou precipitação significativa...10 mm em 24 horas.
 

irpsit

Cumulonimbus
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9 Jan 2009
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Inverness, Escocia
Foi esse o ano (1995) em que comecei a faze registos do tempo.

Lembro que após um verão quente e seco, o outono surgiu tempestuoso em finais de setembro, e durante os meses seguintes (e essas tempestades extra-tropicais). E recordo-me tão bem do final de Dezembro e ínicio de Janeiro de 2006 muito tempestuoso, choveu forte 3 dias seguidos no Natal.

Recordo também de duas tempestades tropicais no litoral norte, no outono de 2001 ou 2002, e no outono de 2006, com alguns estragos, e de um furacão (o único no Porto nos meus 30 anos), quando era pequeno nos anos 80. Nunca soube quais eram os nomes destas 3 tempestades.

No ano de 1995:
- Após um ano hidrológico (1994/1995) de seca, em Portugal Continental, o mês de Dezembro foi extremamente chuvoso, tendo de 22 a 31 ocorrido 80 a 90% da precipitação registada em todo o mês.
- Em 9 de Junho, na ilha das Flores (Açores) foram registados 103 mm de precipitação em 6 horas.
- Mês de Outubro, com dias de temperatura elevada para o mês (superior a 30 ºC) na Madeira, em especial dias 18 e 19.
- Dias 1 a 2 de Novembro, o grupo Central dos Açores foi afectado pela tempestade tropical Tanya.
- Dias 7 e 8 de Novembro, a ilha de S. Miguel foi afectada pela tempestade tropical Noel.
 

Mário Barros

Furacão
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18 Nov 2006
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Maçores (Torre de Moncorvo) / Algueirão (Sintra)
Texto bastante interessante e raro :thumbsup:

Francisco Carneiro de Magalhães e o clima de Moncorvo I

Na sequência de um post anterior, sobre o nevão que surpreendeu Moncorvo (10 de Janeiro), ena sequência dos ventos fortes que por cá deixaram marcas, trago aqui uma sequência de textos de um ilustre e ilustrado moncorvense do séc. XIX, Francisco António Carneiro de Magalhães e Vasconcellos, sobre um “prestígio natural”, seguido da “praga egípcia” aqui ocorrida no inverno de 1843-1844, publicada na Revista Universal Lisbonense, dirigida por António Feliciano de Castilho. Poderão alguns pensar que esta notícia poderia corresponder perfeitamente ao inverno de 2008-2009, que me fez lembrar deste texto. Aqui vai!

“Terrível prestígio natural (carta.)

(2552) Hoje [28 de Dezembro de 1843] se completa o decimo terceiro dia em que aos habitantes d’esta villa e povoações immediatas tem sido vedado ver brilhar em seu horisonte os beneficos raios d’esse astro vivificador, e alma do Universo; quando sabem egualmente que seus patrícios teem gosado geralmente de uma estação alegre e benigna; mas aqui uma tenacíssima e mui densa névoa, originada sem duvida pela próxima confluência dos rios – Doiro e Sabor – tem produzido o portentoso phenomeno de tornar em realidade essas maravilhosas e phantasticas descripções das mil e uma noites, e outras novellas produzidas por imaginações exaltadas , a que somente apraz o maravilhoso, ou impossível, descrevendo e pintando jardins, e arvoredos cujos arbustos, e arvores são nada menos que de prata, cristal, e diamantes; o que effectivamente por nossos olhos estamos observando realisado, pois que cercados por uma athmosphera frigidíssima que o calor do sol não pode penetrar, e aglomerando-se continuamente em pequenas gotas que a nevoa deposita sobre as arvores , plantas, e mais objectos em contacto com a atmosphera, immediatamente se congelam, apresentando aos olhos o mais insignificante destes objectos uma prespectiva magica; por exemplo, n’uma varanda onde por descuido, ou por serem quasi invisíveis antes d’este prazo se tinham deixado alguns fios de téas de aranha, gosa-se agora de uma vista que arrebata, imitando perfeitamente os fios e téas de aranha, festões, laços, e flores de finíssimas perolas ou fiadas de brilhantes.

Qualquer ramo d’ arvore ou arbusto finge exactamente um penacho de cisne como os de que se teem usado os militares; mas desgraçadamente se vão já sentido os efeitos lamentáveis d’este singullar phenomeno, pois que o peso do gêlo é já tal que as árvores não podem com elle, e os passageiros ficam aterrados com o súbito e estrondoso fracasso d’ um robusto pinheiro que se baqueia a seus pés arrancado pela raiz, ou estalando pelo tronco com o peso com que já não pode! E nas oliveiras tem já havido também uma grande perda, e tanto que hoje me disse um homem natural de Massores , aldêa distante daqui uma légua, que por lá tinham quebrado já quasi todas,e se este tempo assim continua póde trazer perdas incalculáveis, pois que a colheita do azeite por aqui era mais de mediana, e por isso as oliveiras não podem resistir ao pêso que o gèlo lhes augmenta, maxime para a parte da serra, onde a nevoa é constante, pois que ao puente d’esta villa felizmente ainda a nevoa levanta algum tanto deixando livres do maior gèlo uma grande porção d’olivaes que não estão em tanto perigo.”

(continuação do texto anterior)

“Finalmente o gêlo é já tanta porção que olhando para os campos no espaço que a nevoa deixa descobrir suscita-se immediatamente a idéa de que os da Syberia não poderiam apresentar a nossos olhos outra prespectiva. Fazendo-se a experiencia hontem de a presentar o thermometro em contacto com a atmosphera exterior da caza em uma varanda descuberta, desceu logo a meio gráu abaixo do gêlo, e haverá dois ou três dias me disse um sugeito que fazendo a mesma observação em outra caza na extremidade da villa para a parte da serra do Monte Roboredo a dois graus abaixo de gêlo !!! Separando outro indivíduo o gêlo que continha uma folha que produz a flôr chamada violeta, me asseverou havia de pesar bem cinco oitavas. As hotaliças de que abunda esta villa são presentemente inúteis, pois as folhas das couves estão dentro d’uma especie de luvas ou bolças de gêlo da grossura d’um pataco, e muitas estão já recosidas por elle de forma que se perderam. E no meio de tudo isto há d’aqui uma pequena legoa no cimo da serra uma aldeola chamada Felgueiras (pátria do grande chymico Thomé Rodrigues Sobral) cujos habitantes se teem gosado sempre do belo sol com excepção de dois dias sómente, em que levantoualgum tanto o nevoeiro, o que tem sido para os habitantes d’esta villa uma ventura, por ser d’aquella aldêa que vem moídas as farinhas para aqui: e do contrario talvez resultasse bastante prejuízo e até fome.

Basta: que já saiu mais extensa esta carta do que eu queria. Se a julgar digna de occupar logar no seu estimável periódico pela raridade do acontecimento fará muito obsequio ao que é de V. etc.

Moncorvo, 28 de dezembro de 1843

F. A. Carneiro de Magalhães e Vasconcellos”

Logo no dia 4 Janeiro, o autor dá conta do final da “terrível praga egípcia”.



Lago da Quinta das Aveleiras, 1902 (Reprodução de Arquivo Particular. Direitos Reservados)

“Terminação de uma praga egípcia (carta)

2582 Tendo-lhe participado em data de 28 do próximo passado o estado, a que por aqui tinha chegado o gêlo, e seus funestos effeitos, motivados pela pertinácia do nevoeiro; agora cumpre-me dizer a V. , que o primeiro dia d’este anno foi para nós o de maior satisfação; quando logo de manhã vimos o horizonte desafrontado, correndo um brando vento sul, e o gêlo caindo das arvores com toda a força. Com a maior alegria se davam os habitantes d’esta villa reciprocamente as boas festas, acompanhadas de gostosos parabéns pelo bom desenlace do drama, que não obstante haver apresentado scenas bem tristes, podia ter um desfecho muito mais trágico; e com effeito, se aquelle estado durasse mais quatro quatro (sic) ou cinco dias, ou se em logar de uma branda chuva , que sobreveio no dia um do corrente, viesse neve, ou um vento forte, então ficávamos sem oliveiras, e outras arvores, pois que assim mesmo houve uma grande perda; porque o pêso do gêlo era já tal, que chegou a abrir, pelo meio até juncto da terra, o tronco de um sovereiro da grossura de dois homens, caindo para o lado as duas ametades.

Os olivaes, que ficavam mais para a serra padeceram muito, e em algumas povoações circumvisinhas consta, que ficaram (com poucas excepções) sómente os troncos das oliveiras. As amendoeiras, pinheiros, castanhos, e geralmente todas as arvores, padeceram mais ou menos conforme o sitio em que se achavam. É porem de notar, que as hortas e nabaes, que estiveram por tanto tempo submersos no gêlo, e que se esperava encontrar perdidos, appareceram sãos; e em vista de tudo isto devemos bemdizer a Providencia, pois qwue podiam ser os prejuizos muitos maiores.

Principiára a nevoa no dia 16 de Dezembro, abrangendo por fim todo o espaço, que vae desde os estevaes do Mogadoiro (sic) até Macedo dos cavalleiros, chegando muito para baixo de Mirandella, e para a Beira dizem que à Meda, estendendo-se também pelo Doiro acima até lá para a Hispanha, ficando izemptos somente n’esta extensão os cumes das montanhas mais elevadas, onde se gozava de um bello sol.

Na noite de 29 de Dezembro tinha o mercúrio descido 3 gráus para baixo de gelo, e no dia 30 logo fez a differença de 2 gráus somente para baixo de gelo, o que nos deu esperança de melhoria de tempo. Chegou-se a congelar o leite nas vasilhas, em que era trazido das aldeias próximas para consumo d’esta villa; e em uma varanda envidraçada, onde estava uma gaiola com um pintasilgo, a quem naturalmente seu instinto ensinou que no poleiro, onde ordinariamente dormem, não estava tão abrigado como em baixo mas não tendo o tolinho a descripção de se desviar do bebedoiro, apareceo de manhã prezo pelas penninhas do rabo, que n’elle tinha metidas, e econgelando-se a agua, alli ficou até que o foram libertar; e felizmente não morreu.

Por estes dias tem-se conservado o thermómetro em 5 a graus acima de gelo

Moncorvo 4 de Janeiro de 1844

Francisco António Carneiro Magalhães.”
FONTE: "Revista Universal Lisbonense - Jornal dos Interesses Physicos, Moraes e Litterários collaborado por muitos sabios e litteratos e redigigo por Antonio Feliciano de Castilho", Imprensa da Gazeta dos Tribunaes, Lisboa, 1844, pp. 258, 270 e 271

http://torredemoncorvoinblog.blogspot.com/
 

MSantos

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3 Out 2007
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Aveiras de Cima
Texto bastante interessante e raro :thumbsup:

Sem duvida muito interessante:thumbsup:

Devem ter sido dias muito complicados tantos dias de nevoeiro com temperaturas negativas, tudo deve ter ficado coberto de sincelo, e consequentemente com incontáveis prejuízos:(
 

David sf

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8 Jan 2009
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Oeiras / VN Poiares
Arquivo de ocorrências históricas

Com a publicação na Meteociel e no Wetterzentrale das cartas de arquivo, tanto do z500, da pressão atmosféricas, da T850, do jet, entre outras, desde 1871, julgo ser interessante compilar aquelas que configuraram na certa um evento histórico.

Para quem gosta de frio é fascinante deambular pelos invernos entre 1880 e 1920. É quase cada tiro, cada melro. Vamos às mais relevantes que encontrei:

9 de Março 1883

Em pleno mês de Março, uma entrada fria de época, algo que muito raramente vemos em Janeiro. Com a 528 DAM em todo o país, e com a -6 a 850 hpa, aquela curvatura ciclónica deixa uma questão em aberto. Terá nevado no litoral sudoeste em pleno mês de Março?

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17 de Janeiro 1885

Uma situação similar às do inverno 2009-10, com uma depressão a injectar vento de sul, certamente húmido. A diferença é que neste caso as T850 e geopotenciais estão baixíssimos, o que originaria neve no litoral, pelo menos a norte do Tejo.

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2 de Abril 1910

Uma entrada fria continental, mete a iso -2 em todo o país, com vento de nordeste. Seria interessante termos as mínimas deste dia, já em plena primavera.

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30 de Dezembro 1917

Outra boa sinóptica para nevar em todo o país:

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O famoso inverno 44-45, com o dia 16 de Janeiro 1945, quando nevou em Lisboa:

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Também as cartas a partir de 1950, que já estavam disponíveis, foram melhoradas. Nas cartas antigas, eu sempre me espantei como tinha nevado a 2 de Fevereiro 1954 em Lisboa, uma vez que não se via nenhuma depressão nem curvatura ciclónica nas imediações. Agora, vê-se uma pequena ciclogénese no Atlântico:

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E, provavelmente, a iso mais baixa em Portugal, desde que há registos, 11 de Fevereiro 1956, -14 no nordeste transmontano:

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Jorge_scp

Nimbostratus
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17 Fev 2009
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Casal do Rato (Odivelas)
Re: Arquivo de ocorrências históricas

Isso é que eram entradas frias a valer... grande paciência tiveste para procurar essas cartas, David!

Eu tive curiosidade em ver as cartas do Ciclone de 1941... metem medo! Que grande temporal de mar deve ter sido, observe-se bem a área enorme de geração de ondas (fetch) ao longo de todo o Atlântico durante longos dias! Além da ondulação gerada pelo temporal local, que já deve ter sido enorme devido aos ventos registados, ainda se tinha que juntar toda a ondulação que tinha sido gerada pelo Atlântico fora! E a maré de tempestade devido á queda abrupta de pressão... uma coisa destas hoje ia dar muito que falar.









A ciclogénese "secundária" que viria a dar origem ao nosso ciclone começa a aparecer aqui...